A 140 anos atrás o Brasil deu um passo importante, mas mesmo hoje há quem defenda a pena capital, chamada de pena de morte ainda existente em países como os Estados Unidos.
Completam-se neste mês 140 anos da
execução da última pena de morte no Brasil. O governo imperial aprovou em 1835
uma lei dedicada a punir exemplarmente os negros que matavam seus senhores, mas
dom Pedro II decidiu abandoná-la em 1876
A pacata cidade de Pilar, na
província de Alagoas, amanheceu tumultuada em 28 de abril de 1876. Calcula-se
em 2 mil o público de curiosos, inclusive vindos das vilas vizinhas, que se
aglomerou para assistir à execução do negro Francisco.
O escravo fora condenado à forca por
matar a pauladas e punhaladas um dos homens mais respeitados de Pilar e sua
mulher. O assassino recorreu ao imperador dom Pedro II, rogando que a pena
capital fosse comutada por uma punição mais branda, como a prisão perpétua. O
monarca, poucos dias antes de partir para uma temporada fora do Brasil, assinou
o despacho: não haveria clemência imperial.
Acorrentado ao carrasco e com a
corda já no pescoço, Francisco percorreu as ruelas da cidade num cortejo
funesto até o ponto em que a forca estava armada. Na plateia havia escravos,
levados por seus senhores para que o caso lhes servisse de exemplo.
—
Peço perdão a todos, e a todos perdoo — disse ele, antes de morrer, à multidão
atônita.
Há exatos 140 anos, essa foi a
última pena capital executada no Brasil. Depois de Francisco, nenhum criminoso
perdeu a vida por ordem judicial. Encerrava uma prática que vinha desde o
Descobrimento — basta pensar no índio que o governador-geral Tomé de Souza
mandou explodir à boca de um canhão em 1549 ou em Tiradentes, enforcado e
esquartejado em 1792, ou ainda no frei Caneca, fuzilado em 1825.
Galés perpétuas
Francisco, porém, foi condenado com
base numa lei de 1835 que mirava exclusivamente os negros cativos. Ela dizia
que seria condenado à morte o escravo que matasse ou ferisse gravemente seu
senhor ou qualquer membro da família dele.
Talvez essa tenha sido a lei mais
violenta e implacável de toda a história brasileira. A norma não admitia a
hipótese de o criminoso continuar vivo — pelas leis anteriores, havendo
atenuantes, ele poderia ser condenado à prisão ou a galés perpétuas (trabalhos
forçados para o governo), no lugar do enforcamento.
Além disso, a lei de 1835 exigia o
voto de apenas dois terços dos jurados do tribunal para a condenação à forca —
até então, a pena capital requeria a unanimidade do júri. E, por fim, ela não
permitia apelações pela mudança da pena — antes, o condenado podia interpor
inúmeros recursos judiciais às instâncias superiores.
O historiador Ricardo Figueiredo
Pirola, autor de Senzala insurgente (Editora Unicamp), diz:
— Havia pena de morte para os livres
que cometiam homicídio, mas para eles a legislação continuou como antes, com
alternativas à forca. O endurecimento afetou só os cativos. De 1835 em diante,
escravo condenado era escravo enforcado: “lance-se logo a corda e pendure-se o
réu”.
Documentos históricos mantidos sob a
guarda do Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que o projeto da lei de 1835
foi proposto pela Regência como forma de conter as crescentes rebeliões
escravas. A Regência foi o governo-tampão da conturbada década de 1830, entre a
abdicação de Pedro I e a maioridade de Pedro II.
Proibição da forca no Brasil
“As circunstâncias do Império em
relação aos escravos africanos merecem do corpo legislativo a mais séria
atenção. Alguns atentados recentemente cometidos contra fazendeiros convencem
dessa verdade”, escreveu o ministro da Justiça no preâmbulo do projeto,
remetido à Câmara e ao Senado em 1833. “A punição de tais atentados precisa ser
rápida e exemplar. ”
Os “atentados recentemente
cometidos” a que o ministro se refere ocorreram nas províncias da Bahia, de São
Paulo e de Minas Gerais, onde escravos atacaram seus senhores por não mais
aceitarem castigos violentos e trabalhos extenuantes ou por serem vendidos para
outros pontos do país, sendo separados da família, por exemplo.
O caso mais rumoroso ocorreu em São Tomé das Letras, no sul de Minas Gerais, em 1833, e ficou conhecido como Revolta de Carrancas. Escravos fizeram uma espécie de arrastão pelas fazendas da região, matando famílias inteiras de latifundiários.
Terror
Episódios desse tipo deixavam a
elite rural aterrorizada. Havia o temor de que se produzisse algo semelhante à
Revolução Haitiana, onde os negros haviam se revoltado, assumido o poder e
abolido a escravidão.
A elite não teve dificuldades para
ver o projeto contra os negros prosperar. Primeiro, porque a lavoura era o
grande motor da economia, e o Império tinha total interesse em protegê-la.
Depois, porque os próprios políticos, na maioria, eram escravocratas.
Entre as vítimas de Carrancas,
estavam parentes do deputado Gabriel Francisco Junqueira (MG), que só escapou
da matança porque se encontrava na Câmara, no Rio, não em sua fazenda. Um dos
regentes da Regência Trina Permanente (1831- 1834) foi José da Costa Carvalho,
dono de vastas terras e dezenas de escravos em São Paulo.
Também os senadores tinham escravos.
Da tribuna do Palácio Conde dos Arcos, a sede do Senado, o senador Silveira da
Mota (GO) defendeu a lei de 1835 narrando um incidente familiar:
— Chegando ontem a minha casa, minha
família recorreu a mim, assustada por um fato que tinha se dado no meu lar
doméstico. Um escravo meu, apenas muito brandamente advertido, insubordinou-se
a ponto de armado, ameaçar minha mulher. Felizmente, minha filha mais velha
teve o bom senso de conter a indignação que o fato tinha excitado e de apelar
somente para minha chegada. É um crioulo de casa, que é muito bem tratado e há
poucos dias tinha recebido dinheiro de minhas mãos.
Foi a trágica Revolta de Carrancas que
apressou a elaboração do projeto da severa lei de 1835. A insurreição se deu em
maio de 1833 e logo no mês seguinte a Regência apresentou a proposta. A
aprovação ocorreu sem sobressaltos. O texto passou duas vezes pela Câmara e uma
pelo Senado, sofrendo alterações mínimas.
Entretanto, muito pouco se sabe sobre o teor das discussões no Senado. Em 1834, o senador Marquês de Caravelas (BA) apresentou um requerimento para que o debate fosse secreto, por ser “pouco político” tratar em público de um tema tão delicado. Um dos documentos da época guardados no Arquivo do Senado explica que, “apesar da oposição de alguns ilustres senadores”, o pedido foi aceito.
Um grande levante negro na Bahia
acelerou a aprovação definitiva do projeto. Foi a Revolta dos Malês, em
Salvador. O saldo dos embates entre cativos e soldados foi de dezenas de
mortes. A revolta explodiu em janeiro de 1835, a segunda aprovação da proposta
na Câmara veio em maio e a sanção da Regência ocorreu em junho.
Manobra imperial
Senado Federal – Portal de Notícias
Senado Federal – Portal de Notícias Nas duas primeiras décadas, a lei de 1835
levou centenas de escravos rebeldes à forca. Aos poucos, porém, dom Pedro II
foi afrouxando as condenações. Em 1854, ele decidiu que todo escravo condenado
à punição capital ganharia o direito de apelar à clemência imperial, pedindo o
perdão ou pelo menos a comutação da pena, assim como já ocorria com os brancos.
O monarca cada vez mais cedia às
súplicas. A última execução de um homem livre ocorreu em 1861. Os escravos
precisariam de mais tempo para se livrarem da pena capital. Francisco, o negro
de Pilar, foi enforcado em 1876.
Apesar de os tribunais continuarem
sentenciando a pena de morte até o fim do Império, em 1889, as forcas foram
definitivamente aposentadas uma década antes. E isso aconteceu sem que se
revogasse a lei de 1835, apenas com as repetidas clemências imperiais.
De acordo com o historiador Ricardo
Alexandre Ferreira, autor do livro Senhores de poucos escravos (Editora Unesp),
a manutenção da lei, mas sem sua execução, foi uma decisão calculada de dom
Pedro II:
— O imperador era contrário à pena
de morte, mas sabia que despertaria a ira das elites agrárias que lhe davam
sustentação se abolisse oficialmente a lei que as protegia. Preferiu agir com
cautela e manter a lei.
Há várias hipóteses para a aversão do imperador às execuções. Uma das mais plausíveis é que ele foi influenciado pelas ideias do escritor francês Victor Hugo, crítico ferrenho da escravidão e da pena de morte. Dom Pedro II foi recebido duas vezes em Paris pelo autor de O Corcunda de Notre-Dame naquela longa temporada no exterior iniciada logo após negar clemência ao escravo Francisco. De fato, depois dessa viagem, ninguém mais no Brasil foi para a forca.
Os escravocratas, cientes da
manobra, passaram a reclamar publicamente, exigindo o cumprimento da lei. Os
senadores diziam em tom de ironia que dom Pedro II estava sendo “filantrópico”.
— Quem poupa a vida de um grande
malfeitor compromete a vida de muitos inocentes — afirmou o senador Ribeiro da
Luz (MG) numa sessão plenária em 1879. — Não é possível que, por causa da
filantropia, homens vivam inquietos pelos perigos que os cercam, sobressaltados
de que a foice ou a enxada do escravo venha tirar-lhes a vida.
Linchamentos
Na mesma sessão, os senadores
lembraram um crime coletivo ocorrido em Itu, em São Paulo, no começo do ano. Um
escravo havia assassinado seu senhor, um dos poucos médicos da cidade.
Enfurecidas, centenas de pessoas tentaram invadir a delegacia para linchar o
criminoso, mas foram contidas pela polícia. No dia seguinte, voltaram e
conseguiram arrancar o escravo da cela. O negro foi morto a pauladas pela
população aos gritos de “viva a justiça do povo! ”
Para os senadores, linchamentos como
aquele, que se repetiam em outras cidades, eram um claro sinal de que a
sociedade — vendo que os cativos, livres da pena de morte, se sentiam
encorajados a assassinar — não tinha escolha senão fazer justiça com as
próprias mãos.
O senador Silveira da Mota foi ainda
mais longe e disse que, já que a lei de 1835 havia sido esquecida, o melhor
seria acabar de vez com a escravidão:
— Nós sabemos que a escravidão é uma
violência e uma injustiça, mas as violências se mantêm senão com outras
violências. Se quereis fazer filantropia à custa da honra das famílias dos
proprietários, então tomai a responsabilidade da emancipação [dos escravos].
Não o queirais fazer tortuosamente, com prejuízo de tantas vidas. Num país de
escravidão, se o governo quer harmonizar a lei criminal com os princípios
filosóficos, então o meio é outro, é acabar com a escravidão. Enquanto não
acabar com ela, o meio é a lei de 1835.
Ainda em 1879, o presidente do
Conselho de Ministros (cargo equivalente ao de primeiro- -ministro), Cansanção
de Sinimbu, compareceu ao Senado para defender o imperador. Ele argumentou que
dom Pedro II concedia a clemência não por bondade, mas por identificar falhas
nos processos judiciais:
— Todos nós sabemos como têm lugar
esses assassinatos. Acontecem em lugares solitários, na ausência de pessoas que
possam testemunhar e, por conseguinte, na dificuldade de se constituírem provas
positivas para se fazer um juízo sobre a criminalidade do réu.
O primeiro-ministro não contou toda
a história. Quando o processo era perfeito, sem deixar dúvida de que o escravo
matou seu senhor, o imperador simplesmente engavetava o pedido de clemência.
Assim, em vez de ir para a forca, o negro continuava na prisão indefinidamente,
à espera de uma palavra final do monarca que jamais viria.
A lei da pena de morte dos escravos
deixou de fazer sentido em 1888, com a abolição da escravidão. Ela só foi
oficialmente revogada em 1890, logo depois da Proclamação da República.
Agencia Senado